“A diferença entre perder uma mulher para o câncer ou para o feminicídio, uma morte evitável, é bem clara: chama-se patriarcado.” Foi com esta declaração contundente que a coreógrafa Lili de Grammont emocionou a plateia da Casa Natura Musical, na terça (19). Ela estava lá para entregar os troféus a Lúcia Xavier, vencedora do Prêmio Inspiradoras 2023 na categoria Justiça para Mulheres, e Irmã Marie Henriqueta, que ganhou na categoria Conscientização e Acolhimento.
Aos 2 anos, Lili perdeu a mãe, a cantora Eliane de Grammont, assassinada por seu próprio pai, o cantor Lindomar Castilho. “A dança foi meu apoio numa época em que não se falava em apoio para filhos de feminicídio”, lembra.
Durante a participação no evento, ela falou sobre a avó Helena, que a criou até os 15 anos e teve de lidar com uma medida judicial que a obrigava a permitir as visitas do pai à neta antes de ele ser condenado e preso. Ela também emocionou a plateia ao cantar trecho da música “João e Maria”, de Chico Buarque. “O que a vida vai fazer de mim?’ é a pergunta que nós nos fazemos”, disse em referência à letra da canção. “Minha mãe morreu cantando essa música no palco”.
O Prêmio Inspiradoras 2023 é uma parceria entre Universa, a plataforma feminina do UOL, e o Instituto Avon. Accor providenciou a hospedagem das finalistas em São Paulo e Uber, o transporte. Dias antes de participar do evento, Lili concedeu a entrevista a seguir a Universa. Falou sobre seu drama e como a dança a ajudou a superá-lo. Além disso, contou sobre o passado e o presente de sua carreira. Entre outras atividades, destacou o trabalho como coreógrafa do ator Filipe Bragança. Ele dá vida ao jovem Sidney Magal no filme “Meu Sangue Ferve por Você”, que estreia no Festival do Rio, no início de outubro… – Veja mais em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2023/09/25/lili-de-grammont-uma-mulher-salva-e-como-nova-chance-a-minha-mae.htm?cmpid=copiaecola

Universa: No final de 2020,você deu um longo depoimento sobre a perda da sua mãe, a condenação do seu pai e a morte da sua avó, que foi quem te criou. Nele, você diz que as aulas de dança te salvaram, pois você dançava até cansar e esquecer o que havia acontecido. Como a dança entrou na sua vida? Você foi levada pela sua avó e achou ali esse refúgio?
LIli: Ninguém me levou. Na escola, ainda bem criança, sempre participava de gincanas que envolviam dança. Já era metida a coreógrafa sem nunca ter entrado numa escola de dança, gostava de organizar todo mundo. Em Queluz, onde vivi com minha avó (dos 6 aos 13 anos), comecei a dançar lambada com um amigo, a gente ganhava os concursos nas ruas nas praças da cidade. Era a época de “Me Chama que eu Vou”, do Sidney Magal, abertura da novela Rainha da Sucata. Um parênteses para contar uma curiosidade incrível! É muito interessante lembrar desse início da minha carreira dançando lambada e, de repente, vem o convite para coreografar o ator Filipe Bragança, que está no papel de Magal no filme “Meu Sangue Ferve por Você”. A vida é cíclica.
Comecei, então, na lambada e, aos 13 anos, minha avó foi diagnosticada com câncer de pulmão e tivemos de nos mudar para São Paulo. Moramos na casa de uma tia, depois outra. Perto da casa da tia Carminha, a quem, inclusive, chamo de mãe, tinha uma academia de dança e eu passava em frente todos os dias a caminho da escola. Decidi que queria estar ali e, a partir do momento em que pisei naquele lugar, fiz todas as aulas possíveis e imagináveis. Saía da escola, almoçava, ia para lá e ficava até fechar. Minha avó faleceu dois anos depois e foi muito impactante. Foram três elaborações de luto em 13 anos, foi muito pesado. Minha mãe morreu quando eu tinha 2 anos, meu pai foi preso, eu tinha 6 anos. Perdi minha avó aos 15. A dança adormecia tanto essas sensações mais antigas da perda da minha mãe e do meu pai — com o feminicídio, o filho perde os dois -, quanto da minha avó. A dança foi uma blindagem. Eu extravasava, ia para o palco com uma fúria tão violenta que as pessoas achavam que eu não queria dividir, mas não era isso. É que eu não podia. Precisava tanto daquilo. Não era o papel, não era o ego da artista de querer ser. Era uma necessidade, algo muito mais profundo que nem eu entendia muito bem o que estava acontecendo comigo.
Hoje, olho para trás e penso: a minha rigidez de horas de treinamento era porque ali estava meu cavalo de batalha. Se eu ficasse sem ele, ia para o fundo do poço. A dança foi meu apoio numa época em que não se falava em apoio para filhos de feminicídio. As primeiras políticas nesse sentido estão começando a acontecer só agora.